Recentemente, Fidel Castro deu uma cutucada em Lula pelo que considerou ser uma ênfase excessiva na indústria canavieira, que da origem colonial até os nossos dias utiliziou trabalho escravo, semi-escravo e, mais recentemente, de baixa remuneração e alto alto risco ocupacional. O comandante ampliou as crÃticas aos eventuais acordos entre Lula e Bush para o fornecimento de biocombustÃveis para os EUA, mencionando potenciais conflitos entre a produção de alimentos e de energia. Do alto de sua “çabedoria”, Lula limitou-se a dizer que esse tipo de conflito não existe. Sem maiores explicações.
Não mais do que duas semanas depois, a ONU divulgou um amplo relatório no qual enfatiza o grande potencial de conflito entre nos usos da terra em decorrência da crescente produção de biocombustÃveis. O relatório afirma o óbvio: esses conflitos serão mais agudos em paÃses com menos disponibilidades de terra agrÃculturável para alimentação humana, como a India e a China, com menores riscos para o Brasil. Mas sonegou a informação de que no Brasil extensas áreas agriculturáveis já vêm sendo compradas por grupos estrangeiros há algum tempo. O governo brasileiro fingiu que não ouviu. O estudo pode ser encontrado em http://esa.un.org/un-energy/pdf/susdev.Biofuels.FAO.pdf, em inglês.
A concorrência entre o uso da terra para a produção de alimentos, de energia, e também de produtos florestais tradicionais, da madeira à celulose para a fabricação de papel, é fato, e a sua ampliação é certa como 2 + 2 são quatro. Na melhor das hipóteses, haverá “apenas” um aumento no preço dos alimentos. Num cenário mais realista, um massivo êxodo dos pequenos produtores rurais em direção à periferia das grandes cidades.
Esse debate torna inevitável um questionamento do próprio modelo de “desenvolvimento” (que no Brasil voltou a ser mero “crescimento”, como durante o reinado de Delfim Netto).
Em 1972, foi publicado um livro que deveria ter revolucionado o pensamento econômico: Limites para o Crescimento. De autoria de um grupo interdisciplinar do Massachussets Institute of Technology â MIT, o estudo foi encomendado pelo Clube de Roma, designação bem humorada de um encontro periódico de dirigentes de grandes multinacionais. Até então, esses encontros eram limitados à s clássicas acordos para dividir mercados. Ao final da década de 60, por inspiração de Giovanni Agnelli, fundador da Fiat, as multinacionais resolveram avaliar as disponibilidades de matérias-primas objetivando melhor assegurar as suas fontes de suprimentos no quadro da tal “ordem econômica internacional”. Desse tipo de abordagem surgiram as grandes associações 50-50 entre a CVRD e grupos estrangeiros para a exportação de alumina e ferro-gusa, bem como o “modelo” exportador da “provÃncia mineral de Carajás”: com baixo valor agregado no território nacional e altos subsÃdios no preço de insumos como energia e outros custos de infra-estrutura (ferrovias, portos, etc). Ao vencedor, as batatas, e aos provincianos, a provÃncia.
As conclusões desse relatório do MIT influiram na decisão da primeira-ministra da Suécia, Gro Brundtland, no sentido de propor a convocação da primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento. A conferência realizou-se em Estocolmo em 1972. o mesmo ano da publicação livro (que foi bem posterior à conclusão dos estudos). A segunda conferência realizou-se no Rio, em 1992.
No Brasil, um único pensador de renome enfatizou, à época, a importância do assunto: Celso Furtado. Em 1974, o nosso economista mais inovador publica “O Mito do Desenvolvimento Econômico”. Com ironia Ãmpar, Celso Furtado afirma: âos mitos operam como faróis que iluminam o campo de visão do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outrosâ.
âA literatura sobre desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano do papel diretor dos mitos nas Ciências Sociais: pelo menos 90% do que aà encontramos se funda na idéia de que o desenvolvimento econômico,tal qual vem sendo praticado pelos paÃses que lideraram a Revolução Industrial, pode ser universalizado. Mais precisamente: pretende-se que os padrões de consumo da minoria da humanidade, que atualmente vive nos paÃses altamente industrializados, são acessÃveis à s grandes massas de população em rápida expansão e que formam o chamado Terceiro Mundo.”
Comentando o estudo feito para o Clube de Roma, Celso Furtado realça o fato de que “nele foi abandonada a idéia de um sistema aberto no que concerne à fronteira dos recursos naturais”. Surpreendemente, nesse brilhante texto, o autor já afirma que “além das consequências diretamente econômica, esse processo (de degradação do mundo fÃsico) provoca elevação da temperatura média de certas áreas do planeta cujas consequências a mais longo prazo dificilmente poderiam ser exageradas“.
Nesse ponto, Celso Furtado faz referência a uma palestra do também economista Georgesu-Roegen pronunciada em 1970 na Universidade do Alabama, na qual afirmara que “do ponto de vista termo-dinâmico, a matéria-energia entra no processo econômico num estado de baixa entropia e sai dela num estado de alta entropia“. Entropia é um conceito da fÃsica que mede o grau de “desordem” da energia, e a “alta entropia” aà mencionada significa a energia que é desperdiçada ou não pode ser “transformada em trabalho”.
Com o tempo, esse tipo de debate foi dado por encerrado, e instituições como o Banco Mundial, o BID, o FMI, o BNDES, e outras do gênero continuaram a fazer mais do mesmo, como tropas de burros que percorrem sempre um só caminho. A consagração da mesmice.
à evidente que por maior que seja a produção de biocombustÃveis e a utilização de fontes renováveis de energia, a demanda continuará crescendo a taxas mais elevadas do que a oferta e de que as disponibilidades fÃsicas da Terra. à inútil ficar imaginando que tudo melhorará se existir um outro planeta habitável. E é fantasiosa a idéia de que a rápida disseminação das tecnologias já existentes nos paÃses altamente industrializados permitirá a reversão ou pelo menos a estabilização das atuais tendências à s mudanças climáticas. Essas tecnologias estão protegidas por patentes e os paÃses ricos não vão pagar por sua disponibilização para as economias periféricas. Se alguém tiver dúvidas, basta ver o exemplo dos medicamentos que salvam ou deixam de salvar vidas em função do nÃvel de renda.
Além disso, é importante ressaltar que não pode existir “transferência de tecnologia” sem um custos. A tecnologia está na cabeça das pessoas, em sua capacidade de criar soluções para os problemas com que se defrontam, de inovar em todos os campos da atividade sócio-econômica. Tecnologia é um misto de educação com cultura, no sentido mais amplo.
A moeda brasileira está momentaneamente valorizada em relação ao dólar em consequência de ter sido atingido o auge de um ciclo de dos massivos investimentos externos necessários para assegurar a expansão das fronteiras econômicas das empresas dos paÃses altamente industrializados, aos quais se acrescentaram a China, a India e o México. Compram tudo, de amplas áreas costeiras para o desenvolvimento turÃstico até as concessões para a operação de telefonia celular. Fora isso, não querem apenas os biocombustÃveis, mas a terra. E estão comprando terras para produzir biodiesel para a exportação.
Isso tudo não significa que o Brasil não deva entrar na era dos biocombustÃveis mas, sim, que deve pensar estrategicamente em sua própria segurança alimentar e energética, ou seja, na segurança alimentar e energética dos brasileiros, antes de priorizar os interesses dos investidores estrangeiros, que logo começarão a exportar e a remeter lucros para os seus paÃses de origem, sem aqui deixar nem mesmo os impostos para a promoção do mÃnimo necessário aos brasileiros: saúde básica, educação, saneamento. Só assim não nos tornaremos uma “potência em biocombustÃveis” apenas no nome, como ocorre na maior parte dos paÃses exportadores de petróleo caracterizados pela existência de uma casta de milionários e pela pobreza da esmagadora maioria da população.
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Quanto à s fontes renováveis de energia, sejamos sinceros: o Brasil não desenvolveu tecnologia na área de geração solar ou eólica de eletricidade. Se quisermos utillizá-las, vamos ter que pagar “pedágios”, royalties, ou seja lá qual for a denominação preferida. Como também pagamos pela transferência de tecnologia à s multinacionais instaladas no Brasil que fabricam desde as turbinas de nossas hidrelétricas a meros transformadores (vendidos de forma cartelizada, com imensos prejuÃzos para a nação?). Vale dizer que essas multinacionais têm origens nacionais bastante bem definidas. Todo o dinheiro que vem, volta. O objetivo dos investidores é um só: o lucro a ser remetido para os paÃses em que vivem.
Muito bom artigo!Â
Achei bem interessante. Vocês estão de parabéns.